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06/11/2020 12:18

De Ângela Diniz ao ‘estupro culposo’: em 1981, Heleno Fragoso já refutava tese de ‘legítima defesa da honra’

Mais de quatro décadas separam o caso da socialite Ângela Diniz, assassinada com quatro tiros pelo namorado em 1976 em Armação dos Búzios (RJ), da acusação de estupro de um empresário pela influenciadora Mariana Ferrer, em 2018, em Florianópolis (SC). Apesar da distância temporal, chamou a atenção da opinião pública a semelhança na argumentação da defesa dos acusados: nos dois casos, os advogados optaram por desconstruir e aviltar a imagem das vítimas. 

Nesta semana, a divulgação pelo Intercept do vídeo da audiência em que Mariana Ferrer acusa um empresário de estupro teve grande repercussão. A estratégia da defesa do empresário - que mostrou fotos íntimas da vítima não relacionadas ao caso e se referiu a ela de forma ofensiva e desrespeitosa -, fez lembrar a tese da “legítima defesa da honra”, usada no julgamento do assassinato de Ângela Diniz. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes classificou as cenas como “estarrecedoras. “O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, escreveu o ministro, no Twitter. O acusado foi inocentado.

A repercussão do episódio deu origem ao termo “estupro culposo”, que passou a ser usado nas redes sociais para criticar o desfecho do caso de Mariana.

‘Praia dos Ossos’

Assistente da promotoria no segundo julgamento de Doca Street, assassino confesso de Ângela Diniz, o advogado Heleno Fragoso, fundador Fragoso Advogados, teve sua atuação destacada no sétimo episódio do podcast Praia dos Ossos, que reconta a história da morte da socialite mineira e a comoção e o debate público e de costumes que acompanharam os julgamentos, em Cabo Frio (RJ). Ângela Diniz foi assassinada com quatro tiros. Doca alegou ciúmes e disse que a amava e não podia pensar em perdê-la. Na ocasião, críticos passaram a usar o bordão “Quem ama não mata”. 

Ângela Diniz em comercial de TV para o cartão de crédito Passaporte, dirigido por Luiz Sergio Person, nos anos 1970. Reprodução do podcast Praia dos Ossos

Heleno participou do segundo julgamento do caso, em 1981, acompanhado pelos filhos Fernando, sócio do Fragoso Advogados, e José Carlos. O podcast destacou como Heleno confrontou a tese de “legítima defesa da honra”, sustentada pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Evandro Lins e Silva e pelo criminalista Humberto Telles nos julgamentos do assassinato de Ângela Diniz em 1979 e 1981, respectivamente. Funcionou no primeiro julgamento, em que Doca foi absolvido. 

Embora não constasse no Código Penal, o argumento era amplamente usado na absolvição de acusados de assassinatos de mulheres no Brasil, e buscava justificar o crime com base no comportamento moral da vítima.

“A linha que ele (Heleno) adotou foi de se colocar como uma voz que estava do lado das mulheres e contra a violência que sempre se praticou por parte dos homens contra elas. Era uma mensagem simples. Ele disse ‘a honra do homem não reside no sexo da mulher’. E outra: ‘Ângela era uma mulher decente e honesta que amava os filhos. Ela não está em julgamento, e sim Doca Street”, comentou Branca Vianna, idealizadora e narradora do projeto.

Em entrevista ao “Praia dos Ossos”, Fernando Fragoso relembrou o clima que cercava o Tribunal de Cabo Frio (RJ) na segunda vez em que Doca Street foi a júri. “Doca foi vaiado quando chegou ao Tribunal no segundo júri. Havia toda uma movimentação, faixas do movimento feminista. O movimento das mulheres realmente recrudesceu naquela altura e foi decisivo. As mulheres se movimentaram para valer. Tanto que o próprio povo de Cabo Frio mudou completamente de posição. Humberto Telles era um belo advogado e entrou vencido, claramente vencido.”

Edição do jornal Diário da Tarde. Reprodução do podcast Praia dos Ossos

Doca Street condenado no segundo júri

No julgamento, Doca Street foi condenado a 15 anos de reclusão por homicídio qualificado. Em uma entrevista de TV da época recuperada pelo podcast, Heleno discorreu sobre o impacto da decisão. 

“Eu creio que no julgamento de Doca Street, os meios de comunicação em geral exerceram uma função extremamente importante no sentido de uma certa conscientização do ridículo que representa, no estado atual dos nossos costumes, a tese da legítima defesa da honra para o homem que é abandonado pela mulher e a fuzila com quatro tiros na cara. Creio que essa decisão pode ter a sua relevância, mas isso exigirá ainda que passe muito tempo para que se modifique substancialmente a posição da mulher na sociedade. O que vai depender não só de uma eliminação da desigualdade entre os sexos, mas também de uma eliminação da estrutura opressiva e violenta que existe na sociedade atual.”

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Branca Vianna, do Praia dos Ossos, afirmou ver uma importante mudança na maneira como as pessoas perceberam o julgamento da influenciadora Mariana Ferrer. “A sociedade ficou do lado dela. Acho que é uma evolução. É um progresso muito grande que, hoje em dia, quando uma coisa dessas acontece e é divulgada, a reação da sociedade seja a favor da vítima.”

 

 

 

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